O sentido que sempre me foi mais aguçado é o olfato. É só eu sentir o cheiro de algo que me transporto para onde o aroma me leva: infância, festa, lugares, acontecimentos, amores...
Eu me lembro bem do dia em que a ladra do fôlego de vida impregnou em minhas narinas e, por mais que eu tente esquecer, sempre que uma brisa bate em meu rosto, sinto o cheiro desta velha companheira de todos os seres vivos – A morte.
Era domingo, dia das mães. Eu tinha uns 16 anos. Fazia um calor que não chegava a incomodar. Estávamos nos preparando para um almoço em família, onde iríamos reunir 4 gerações de nossa família.
Foi então que recebemos a notícia: Fulano, filho de Beltrana, havia se matado na noite anterior com um tiro na têmpora.
E segue o cortejo para a casa de Beltrana, que recebeu este “presente” no dia das mães. Enquanto minhas primas, que conheciam melhor a família do morto foram dar os pêsames e tentar ser útil em meio aquele caos, eu fiquei na varanda, onde o corpo estava sendo velado.
Nunca gostei de funerais, acho muito estranho todo esse ritual de ficar olhando um corpo vazio de alma ali, posicionado com mãos cruzadas no ventre sendo observado tanto por conhecidos como por curiosos.
Naquelas condições ficar observando um cadáver é ainda mais doloroso para a família, porque sempre tem aquele enxerido que quer chegar mais perto a fim de ver por onde a bala entrou na têmpora e para isso, retiravam cuidadosamente por alguns instantes o véu de cima da cara do morto indefeso.
Eu via tudo aquilo calada, estava hipnotizada. Não conseguia retirar meus olhos do jovem ali sem vida, fiquei por alguns bons minutos a uma distância confortável, mas de onde eu estava, dava pra ver suas mãos esbranquiçadas, com os dedos longos já arroxeados perto da unha. As mãos de um morto são uma das coisas que mais me atemoriza.
Foi aí que aconteceu! No momento em que estava absorta nas mãos do defunto, que senti aquele cheiro. No mesmo instante minhas pupilas dilataram, procurando o incontrável. Inspirei profundamente para detectar de onde vinha o cheiro que me arrepiou a espinha e só pude pensar naquele moço que na noite anterior, dera cabo da própria vida.
Mais alguns minutos se passaram e novamente o cheiro da morte. Era enjoativo, meio adocicado, um aroma de tarde nublada, com prenúncio de tempestade.
Eu estava sufocando, saí de perto do caixão e me encostei num muro. Fechei os olhos e tentei apagar de minha memória olfativa aquele cheiro que me remetia a uma tumba fria e sem o hálito do prazer de estar viva.
Na ânsia de esquecer, o cheiro tornou-se mais forte. Vinha de todos os lados, encurralando-me contra a parede, fazendo-me sufocar tamanho era o peso daquele odor sem sentido, sem chão, sem glória, sem futuro.
Eu sabia que ninguém mais sentia o mesmo cheiro que eu estava sentindo. Essas coisas são pessoais, não se pode passar de pessoa pra pessoa. A minha consciência dizia que aquele cheiro não vinha do jovem que decidiu por não viver.
O cheiro da morte veio de minha associação ao ver o cadáver e dos perfumes que passavam por mim cada vez que um vivo se aproximava.
Desde então suplico a meu próprio sentido aguçado que não busque mais sentir este cheiro, mas o meu nariz me prega peças e dia desses ao passar embaixo de um viaduto, o cheiro me perseguiu e eu, desconfiada, olhei para o céu a fim de encontrar algum sinal que prenunciasse algum desligamento de almas na Terra.
Sorri da minha idiotice. Afinal, tenho memória olfativa, não mediunidade.
Por Lini Ribeiro