quinta-feira, maio 29, 2014

Maio despedaçado


Café fumegando na xícara vermelha da minha mãe. Hoje decidi não tomar o ansiolítico, acompanhante das últimas noites. Ele me deixa dopada e esquecida, e é fato, gosto de registrar os acontecimentos. Precisava lembrar. Maio passou. Meio como os outros meses. Meio duro, meio frio, meio aço cortante. Tomei tarja preta pela primeira vez, e dormi 11h ininterruptas. Liguei para um rapaz, chamei-o pra sair, ele disse não. Vale dizer, que ele já havia manifestado verbalmente, o desejo de ficar comigo, e já tínhamos nos beijado dias antes. Reiterei o pedido, e a resposta obtida foi a mesma. Fui na formatura do meu melhor amigo, encontrei aquele que foi o meu melhor namorado: nos beijamos. Meio sonho, meio fantasia, meio aquele amor que nunca acaba, que fica arrumando jeitos para se perpetuar, e o destino, e o universo conspirando pra a gente não deixar de se amar.



(A imagem eu retirei daqui: http://juhmis.wordpress.com/ )

quarta-feira, maio 14, 2014

Coração

Bicha devia nascer sem coração. É, devia nascer. Oca. É, feito uma porta. Ai, ai. Não sei se quero chá ou café. Não sei. Meus nervos à flor de algodão. Acendo um cigarro e vou assistir televisão. Televisão. O especial de Roberto Carlos todo ano. Ai, que amolação! Esse coração de merda. Bicha devia nascer vazia. Dentro do peito, um peru da Sadia. É, devia.

Célio conheceu Beto na estação de trem, em setembro. Moreno bonito. Célio acariciou o membro de Beto no aperto vespertino, no balanço ferroviário. Beto gozou na mão do viado. Encabulado, mascou seu chiclete, desceu e nem olhou para trás, para Célio. Célio feliz por um certo tempo. A gosma entre os dedos. A porra a gente esconde no ferro, debaixo do banco.

Depois encontrei com ele de novo. Oi, oi. Perguntou se eu tinha um cigarro, se morava na XV de novembro. Se eu trabalhava, de quê trabalhava, essas coisas. Se ele podia me acompanhar até em casa. E você? Deixei, deixei. Eu não tenho medo. Se for ladrão, não tem o que levar. E ele parecia, sei lá, um menino bom. Bafão, mona. Abra a janela que eu estou ficando tonta.

Era feriado de 7 de setembro. O povo descendo cariado, passando catracas, barracas. Célio se sentindo…
A dona do puto.
… na companhia de Beto, que vestia  camiseta branca, calça bege, meio jegue, de peito cabeludo.
- Chegamos.

Havia cacharolas cinzas no fogão, pratos, ossos e esponja. No quartinho, colchas coloridas.
Conquista de território.

Aí o bofe tomou um ki-suco de morango, comeu um omelete, conversou pouco e nada. Não rolou nada aquele dia, acredita? Ele travou, não sei. Não-me-toque, eu não toquei. E assim a gente ficou. Ele saiu chupando um chiclete de uva-maça-verde. Eu amarelei.

Depois disso, quem disse que Célio se concentrou nos seus desenhos? Fazia moda verão, inverno, jaquetas e turbantes. E pensava na boca do Beto, no desodorante. No dia em que ele gozasse no seu travesseiro de cetim. Ai, ai de mim. Procurou o moreno em todos os vagões. Não esqueceu nenhum. 

A pior coisa, amiga, é uma trepada quando fica engasgada. Vira uma lembrança agoniada. Uh!
Encontrou Beto uma semana depois. Na mesma hora em que estava masturbando outro, desiludido e oco. Um loiro que nem chegava aos pés do moreno misterioso. Epa! Correu e disse alguma coisa: algo como “Omelete recheado”. Vamos de novo?

Foram e chegaram.
No quartinho, colchas coloridas. Conquista de território, nunca se sabe. O mundo é cheio de voltas desconfortáveis. Mas de hoje não passa.

Ai o bofe tomou ki-suco e comeu omelete. Tinha bolo Souza Leão. Foi quando ele perguntou se podia dormir comigo aquela noite. Claro que sim, se não! O rádio-relógio tocando Maria Bethânia, as canções que você fez para mim. Eu não tive dúvida. Fui tirando a roupa do bofe. Uau! Menina!  Bicha devia nascer sem coração, tô te falando.
Quando acordou, depois de tanto prazer, cadê o amor? O menino saiu, na madrugada. Evaporou-se. Como? Célio viu se tudo na casa estava em ordem. As caçarolas intactas, os ossos continuavam à mostra. Ora, que menino mais capeta! Só sobrou o chiclete, acredita?

Ai, ai. Mesmo assim, cheio de formiga.
Cheguei atrasado na confecção, na terça. Não quis almoço, não fiz marmita. Lá fui eu de novo atrás do bofe. Como uma anta perdida. Não tem coisa pior do que o abandono. Depois de uma trepada daquela, tudo parecia ser eterno. Aí é que a gente se engana.
Nada, mona.
No lugar do coração, bicha devia ter uma bomba. A minha vontade era ter uma granada, para estourar no trem. Para fazer uma desgraça, juro. Só assim, Deus vai olhar para mim. Vai me trazer de volta aquele anjo. Sim, porque era um anjo. Não me roubou. Não me bateu. Sabe o que ele me falou? Que queria ser corredor de Fórmula-1. Vai ver foi isso. Zummmmm.

Até hoje, nem sombra. Célio não quis saber de outro cara. Mesmo que alguns só faltassem esfregar o pau na sua…
Você me respeite.

Tem um, lá no Brás, que vive convidando o Célio para ir ao parque. Para comer tapioca com creme de leite. Naquele Natal, até ganhou do cara um peru da Sadia, um vinho…
Não agüentei ficar em casa, sozinho, e vim tomar um café com você. Essa bosta de tristeza que bate  no coração da gente, de repente. Que desmantelo! Bem que Roberto Carlos podia cortar esse cabelo. E eu, nascer sem coração, repetiu. É, sem coração.
Para não ter que ouvir essa canção.

Marcelino Freire
 Livro de Contos: Contos Negreiros