domingo, maio 08, 2016

Um gosto remoto das pitangas


No mesmo momento que os acordes do piano começaram a se repetir frenéticos, sem medo algum nossas bocas abertas se procuraram. Houve nas línguas um gosto remoto das pitangas que colhíamos no caminho para o rio, depois o fresco abraço das águas envolvendo nossos membros, as gotas das lágrimas que eu bebia uma por uma ganhando lentas o mesmo gosto claro das pedras mergulhadas na sombra, poças de sol entre as quais brotava vez que outra uma descuidada flor amarela onde pousavam borboletas, essas de asas azuis transparentes, debruadas de ouro, então emergiríamos da água doce abençoados por ninfas e devas pisando descalços na terra quente de sol para subir a encosta cheia de espinhos até a cerca de arame farpado separando o abismo do caminho cercado de hibiscos que conduzia à casa de portas e janelas todos os dias escancaradas, porque era para sempre verão, em torno da qual nunca houvera nem haveria cães furiosos, latidos transformados nesse gosto vermelho de pitangas, salivas misturadas, quase negras de tão maduras. Quis dizer a ele que voltariam as manhãs, ainda mais claras agora que estávamos juntos, voltariam sim as claridades, o calor das tardes sobre a terra coberta de verde e também os crepúsculos de nuvens roxas e rosadas colorindo o cume dos montes, e mais tarde as noites embaladas por flautas, cetins, brisas com cheiro de mato varando as frestas das vidraças, se não para sempre, acho que disse, por muito tempo, por tanto tempo, tão longo, tão fundo, que será como para sempre, Ricardo, como se finalmente disparasse minha seta incendiada em direção às estrelas, trazendo-te junto comigo, porque brilharemos ambos de fogo, mais que o teu sol, a caminho dos meus inúmeros satélites girando no infinito.

Caio Fernando Abreu – Triângulo das águas