Bicha devia nascer
sem coração. É, devia nascer. Oca. É, feito uma porta. Ai, ai. Não sei se quero
chá ou café. Não sei. Meus nervos à flor de algodão. Acendo um cigarro e vou
assistir televisão. Televisão. O especial de Roberto Carlos todo ano. Ai, que
amolação! Esse coração de merda. Bicha devia nascer vazia. Dentro do peito, um
peru da Sadia. É, devia.
Célio conheceu Beto
na estação de trem, em setembro. Moreno bonito. Célio acariciou o membro de
Beto no aperto vespertino, no balanço ferroviário. Beto gozou na mão do viado.
Encabulado, mascou seu chiclete, desceu e nem olhou para trás, para Célio.
Célio feliz por um certo tempo. A gosma entre os dedos. A porra a gente esconde
no ferro, debaixo do banco.
Depois encontrei com
ele de novo. Oi, oi. Perguntou se eu tinha um cigarro, se morava na XV de
novembro. Se eu trabalhava, de quê trabalhava, essas coisas. Se ele podia me
acompanhar até em casa. E você? Deixei, deixei. Eu não tenho medo. Se for
ladrão, não tem o que levar. E ele parecia, sei lá, um menino bom. Bafão, mona.
Abra a janela que eu estou ficando tonta.
Era feriado de 7 de
setembro. O povo descendo cariado, passando catracas, barracas. Célio se
sentindo…
A dona do puto.
… na companhia de
Beto, que vestia camiseta branca, calça bege, meio jegue, de peito
cabeludo.
- Chegamos.
Havia cacharolas
cinzas no fogão, pratos, ossos e esponja. No quartinho, colchas coloridas.
Conquista de
território.
Aí o bofe tomou um
ki-suco de morango, comeu um omelete, conversou pouco e nada. Não rolou nada
aquele dia, acredita? Ele travou, não sei. Não-me-toque, eu não toquei. E assim
a gente ficou. Ele saiu chupando um chiclete de uva-maça-verde. Eu amarelei.
Depois disso, quem
disse que Célio se concentrou nos seus desenhos? Fazia moda verão, inverno,
jaquetas e turbantes. E pensava na boca do Beto, no desodorante. No dia em que
ele gozasse no seu travesseiro de cetim. Ai, ai de mim. Procurou o moreno em
todos os vagões. Não esqueceu nenhum.
A pior coisa, amiga,
é uma trepada quando fica engasgada. Vira uma lembrança agoniada. Uh!
Encontrou Beto uma
semana depois. Na mesma hora em que estava masturbando outro, desiludido e oco.
Um loiro que nem chegava aos pés do moreno misterioso. Epa! Correu e disse
alguma coisa: algo como “Omelete recheado”. Vamos de novo?
Foram e chegaram.
No quartinho,
colchas coloridas. Conquista de território, nunca se sabe. O mundo é cheio de
voltas desconfortáveis. Mas de hoje não passa.
Ai o bofe tomou
ki-suco e comeu omelete. Tinha bolo Souza Leão. Foi quando ele perguntou se
podia dormir comigo aquela noite. Claro que sim, se não! O rádio-relógio
tocando Maria Bethânia, as canções que você fez para mim. Eu não tive dúvida.
Fui tirando a roupa do bofe. Uau! Menina! Bicha devia nascer sem coração,
tô te falando.
Quando acordou,
depois de tanto prazer, cadê o amor? O menino saiu, na madrugada. Evaporou-se.
Como? Célio viu se tudo na casa estava em ordem. As caçarolas intactas, os
ossos continuavam à mostra. Ora, que menino mais capeta! Só sobrou o chiclete,
acredita?
Ai, ai. Mesmo assim,
cheio de formiga.
Cheguei atrasado na
confecção, na terça. Não quis almoço, não fiz marmita. Lá fui eu de novo atrás
do bofe. Como uma anta perdida. Não tem coisa pior do que o abandono. Depois de
uma trepada daquela, tudo parecia ser eterno. Aí é que a gente se engana.
Nada, mona.
No lugar do coração,
bicha devia ter uma bomba. A minha vontade era ter uma granada, para estourar
no trem. Para fazer uma desgraça, juro. Só assim, Deus vai olhar para mim. Vai
me trazer de volta aquele anjo. Sim, porque era um anjo. Não me roubou. Não me
bateu. Sabe o que ele me falou? Que queria ser corredor de Fórmula-1. Vai ver
foi isso. Zummmmm.
Até hoje, nem
sombra. Célio não quis saber de outro cara. Mesmo que alguns só faltassem
esfregar o pau na sua…
Você me respeite.
Tem um, lá no Brás,
que vive convidando o Célio para ir ao parque. Para comer tapioca com creme de
leite. Naquele Natal, até ganhou do cara um peru da Sadia, um vinho…
Não agüentei ficar
em casa, sozinho, e vim tomar um café com você. Essa bosta de tristeza que
bate no coração da gente, de repente. Que desmantelo! Bem que Roberto
Carlos podia cortar esse cabelo. E eu, nascer sem coração, repetiu. É, sem
coração.
Para não ter que
ouvir essa canção.
Marcelino Freire
Livro de
Contos: Contos Negreiros