No mesmo momento que os acordes
do piano começaram a se repetir frenéticos, sem medo algum nossas bocas abertas
se procuraram. Houve nas línguas um gosto remoto das pitangas que colhíamos no
caminho para o rio, depois o fresco abraço das águas envolvendo nossos membros,
as gotas das lágrimas que eu bebia uma por uma ganhando lentas o mesmo gosto
claro das pedras mergulhadas na sombra, poças de sol entre as quais brotava vez
que outra uma descuidada flor amarela onde pousavam borboletas, essas de asas
azuis transparentes, debruadas de ouro, então emergiríamos da água doce
abençoados por ninfas e devas pisando descalços na terra quente de sol para
subir a encosta cheia de espinhos até a cerca de arame farpado separando o
abismo do caminho cercado de hibiscos que conduzia à casa de portas e janelas
todos os dias escancaradas, porque era para sempre verão, em torno da qual
nunca houvera nem haveria cães furiosos, latidos transformados nesse gosto
vermelho de pitangas, salivas misturadas, quase negras de tão maduras. Quis
dizer a ele que voltariam as manhãs, ainda mais claras agora que estávamos
juntos, voltariam sim as claridades, o calor das tardes sobre a terra coberta
de verde e também os crepúsculos de nuvens roxas e rosadas colorindo o cume dos
montes, e mais tarde as noites embaladas por flautas, cetins, brisas com cheiro
de mato varando as frestas das vidraças, se não para sempre, acho que disse,
por muito tempo, por tanto tempo, tão longo, tão fundo, que será como para
sempre, Ricardo, como se finalmente disparasse minha seta incendiada em direção
às estrelas, trazendo-te junto comigo, porque brilharemos ambos de fogo, mais
que o teu sol, a caminho dos meus inúmeros satélites girando no infinito.
Caio Fernando Abreu – Triângulo das
águas